sábado, 6 de janeiro de 2007

O uso da força e da forca

Uma semana passou desde que Saddam Hussein passou nos cadafalsos da nossa indeferença, dos nossos ecráns. Saddam morreu mas nós não saímos ilesos da sua execução. Fomos executados por um vídeo gravado por telemóvel (você viu? Eu não). A princípio não percebi totalmente o fenómeno e embarquei-me num aparente silêncio da mente e atravessei uma nuvem de ignorância. Decidi ler as análises e comentários sobre o assunto (você leu o excelente artigo de Pacheco Pereira publicado no Público de 4 de Janeiro de 2007? Eu li)

O que sairá dessa cabecinha

Não posso deixar de lado um particular episódio pessoal e transmissível. Há uns dias pediram-me para comentar aquela morte – O que é que achas disso, perguntou-me ansiosa. (Estou curiosa para ver o que sairá dessa cabecinha, confessou-se.) E na altura, enviei-lhe um e-mail Achas justo que em plena praça natalícia nos entreguem a cabeça do ditador em pratos de telemóveis, inquiri-a. A resposta foi um curto e seco Acho repugnante. E eu num acesso de humor, imaginastiquei e reparei na ironia, em português força e forca estão separadas por um cordel, uma cedilha: ç (c). Acrescentei num postito: é irónico Saddam não ter reparado que cedo ou tarde alguém que puxaria a corda da força (ou da forca).

Depois de serenamente voltar da minha nuvenzinha de ignorância, decidi trocar as pernas debaixo da umbreira da porta da casa dos meus sogros e escrever a resposta ao – O que é que achas disso, saciando ao mesmo tempo a sede de saber. Ao o que sairá dessa cabecinha. (Uma coruja rompe-me o pensamento, apagando uns vagos sinais de nada em torno da palmeira; no tanque repousam duas peças de roupa acabadas de torcer pela minha sogra que quando acabares, estende-as por favor vou ter de sair, deixa cair o pano, fico sozinho com Saddam, o You Tube, a Internet, as televisões, os cães ladrando vivas como no vídeo que não vi porque acho repugnante. Como assim?, retórica narrativa. Que mundo fascinante este (tempos interessantes, no dizer de Eric Hobsbawn), do fascínio da morte do outro: daquele que Se não me é nada, nem me pertence, nem é do meu país, não é daquele país cujo nome não direi, não interessa. A pressão do mercado dos media; a liberdade youtubiana; a coligação de espectáculo e alienação.

Saddam e a ética ocidental

Uma semana depois, ainda vejo Saddam morrer; e, teimosamente, ainda mata, imortalizado nas imagens que uma criança tentou emular, sucumbindo aos pés da televisão, da Internet e da sociedade que se perde entre o bem e o mal. Isso do bem e do mal é muito complicado, o melhor é nem pensar nisso; não tenho tempo, vivo à mais de 2 mb por segundo, não me quedo nessas questões. E globalizamos a essência social num tempo efémero e num espaço virtual. E nós a esquecermo-nos, rectius, fingimos esquecer porque é tão mais simples, num processo de encobrimento, You, você, a figura do ano, consagrada pela revista Time, a tentar moldar o tempo e o mundo, difundindo num blog as imagens de Saddam; Esquecendo-se de Cesar Beccaria: A cidadania impõe um limite a actuação do Estado perante a pena de morte. E de Emmanuel Kant: Trata um homem como um fim em si mesmo. Num pensamento: O contrato social não aliena o homem no Estado, apenas o partilha. Retirado das suas reflexões sobre o direito, a cidadania, o Estado, o poder, a ética, a sociedade. Não queres saber, porque não te toca na pele.

Pacheco diz que o Ocidente conquistou o poder de limitar o poder do Estado de determinar a morte dos seus cidadãos (anote: os EUA, o tal país cujo nome não mencionei, são um certo outro Ocidente): ou seja, no Ocidente o uso da forca está limitado (em certos lugares nesse país cujo nome não vou mencionar) ou mesmo abolido. Acrescento com modéstia outra conquista: o uso da força também está limitado. Em suma, o Ocidente domou a força e a forca: submeteu-os a uns tantos espartilhos a que chamarei por ocidental comodidade democracia. Com ou sem Deus.

Um certo país chamado Iraque

No Iraque não há democracia: não havia na força de Saddam nem há agora na forca de Saddam. E os ditos juízes e carrascos que mandaram puxar a corda que retirou a força ao ditador, colocando-o cadafalsamente na forca, não conhecem Beccaria nem Kant. Aliás, Iraque não é um Estado porque a dignidade do ser humano encontra o seu equilíbrio no binómio força/forca e não no justo respeito da sua condição de cidadão. Dizem as narrativas que mil palavras não seriam suficientes para os 2’ 38’’ do filme. Deixo isso para os jornalistas, que se bastam no enunciado. Chamamos a sua atenção para o facto destas imagens poderem chocar a sua sensibilidade. Mais um choque português o choque de sensibilidade; e não o choque ético, que exige uma velocidade mais lenta, quase de tartaruga. Incompatível com o mercado, com o You Tube, com a netificação social. E que nessas imagens, Que podem chocar a sua sensibilidade, movidas a cores e bem sonoras, movidas a toque da tecnologia de último grito. Saddam revela-se tranquilo, sereno e até mesmo digno. Pudera! Uma certa dignidade de um homem que tal como os seus carrascos encapuçados sabia, porque executou, mandou executar e assistiu a outras tantas execuções, que a caminhada tinha chegado ao fim. Não vale a pena refilar, terá pensado o ditador. Ou terá lembrado um eco agora fantasmagórico de palavras que ele mesmo deve ter proferido mil vezes antes e que agora lhe esmagaram o pensamento. Um choque histórico, determinista, fatídico. Não vale a pena refilar! Com essas palavras, Não vale a pena, o ditador fechou-se numa aparente dignidade, num reconhecimento de derrota, conformado que refilar, tal como terá dito às suas vítimas, não tinha o dom de lhe colocar a tal cedilha na forca. E assim, sabia que chegara ao fim: caíra na teia que ele próprio tecera. Só lhe restava aguardar ao esticar da corda. Na morte Saddam confrontou-se consigo mesmo e estarreceu-se com a razão avant la lettre que teve – Não ... refilar! E morreu ciclicamente: já estava morto.

Como ao Iraque, um país cuja corda vai-se esticando entre a violência sectária e a guerra civil.

1 comentário:

Unknown disse...

O uso da força e da forca é um excelente artigo de reflexão sobre a intervenção do Ocidente no Oriente através dos valores.

A sociedade actual recebe e não consegue fazer a "digestão" da quantidade de factos/acontecimentos que nos chegam através de inumeros terminais multimedias (telemóveis, televisões, pcs, etc).

Espero que as reacções e a não-reacção sobre a Execução de Saddam também deva ser reflectida.